Os gritos de desespero da mãe de Filipe Cambraia, o agente da PSP que faleceu quarta-feira depois de ter sido atingido acidentalmente por um colega no interior da esquadra do bairro da Horta Nova, Lisboa, ouviam-se ontem nas imediações da casa onde a família reside em Murtede, Cantanhede.

O polícia, de 24 anos, tinha prometido aos pais ir passar o fim-de-semana a casa, mas morreu no Hospital de Santa Maria depois de o chefe José Carlos Frias Marques, 41 anos, o ter atingido com um tiro de pistola Glock 19, com o cano da arma a metro e meio de distância da barriga.

Vítima e autor do disparo acidental preparavam-se para efectuar um policiamento gratificado no Estádio da Luz, durante o jogo Benfica-Sporting. A revolta de familiares e amigos de Filipe Cambraia reflectia isso. "Morreu para ir ganhar 19,12 euros por quatro horas de policiamento gratificado. Uma miséria", lamenta uma amiga. Quanto ao chefe José Carlos Marques, autor do disparo fatal, iria ganhar 23 euros por igual período de trabalho.

Agora, a PSP deverá atribuir uma indemnização à família da vítima, de 100 mil euros (valor estimado para estes casos), além de uma pensão vitalícia. Os próximos seis meses de ordenado de Filipe Cambraia também serão pagos. De lágrimas nos olhos, Sara Neves, prima da vítima, diz que a forma como Filipe morreu "é muito injusta", e que este era "muito protector em relação aos pais". Entrou na PSP em finais de 2009 e sempre prestou serviço na esquadra do bairro Padre Cruz.

Ia com frequência a casa. "Ajudava os pais na agricultura, e até os vizinhos, quando era altura das vindimas", diz o primo Constantino. Filipe Cambraia deixa ainda um irmão mais velho e a namorada. Já tinha pedido transferência para próximo de casa.

PARTILHAVA APARTAMENTO

Filipe Cambraia vivia em Lisboa, num apartamento arrendado na zona de Chelas. O espaço era dividido com um amigo e colega de profissão, de apelido Urjais. Também natural de Cantanhede, este jovem matriculou-se na Escola Prática da PSP no mesmo curso que o agente Cambraia e presta serviço na esquadra do bairro da Horta Nova, onde ocorreu o acidente.

DISCURSO DIRECTO

"FOI REFLEXO DO RISCO PROFISSIONAL", Paulo Rodrigues, Presidente ASPP/PSP

Correio da Manhã - A falta de formação pode estar na origem do acidente no interior da esquadra da Horta Nova?

Paulo Rodrigues - Tendo em conta que estamos a falar de um disparo de Glock 19, a informação que tenho é de que a formação dada (teórica e prática) se generaliza a todo o efectivo.

- O risco da profissão de Polícia está novamente presente nesta situação?

- Acredito que sim. Mais até do que falta de formação, a morte do agente Filipe Cambraia foi um reflexo do risco profissional na PSP.

- A que resultados poderá chegar o inquérito de averiguação dos factos?

- Podemos estar perante uma falha de equipamento, ou qualquer outra situação. Temos de aguardar pelo inquérito.

- O autor do disparo é vosso associado (ASPP). Como o caracteriza?

- O perfil dele enquadra-se no perfil adequado às funções. São situações que podem acontecer a qualquer polícia.

TIRO DISPARADO EM CUBÍCULO

O disparo acidental de pistola Glock 19 que causou a morte ao agente Filipe Cambraia foi feito no interior do vestiário da esquadra da PSP do bairro da Horta Nova, e a apenas metro e meio da sua barriga. No espaço, um cubículo com três metros quadrados, estavam a vítima e o autor do disparo (chefe José Carlos Frias Marques), ambos de pé junto a um frigorífico, e um agente sentado numa cadeira a comer. José Marques é graduado de serviço na Horta Nova e tinha trabalhado a noite anterior. Filipe Cambraia prestava serviço na esquadra do bairro Padre Cruz, mas tinha combinado com José Marques encontrar-se com ele no local de trabalho deste para irem ambos para o Estádio da Luz.

O disparo acidental aconteceu pouco antes da saída prevista. José Marques terá mantido o carregador municiado da arma dentro da pistola enquanto fazia os procedimentos de segurança da mesma. Ao puxar para trás a corrediça da Glock 19, automaticamente colocou uma munição na câmara. Com o cano da arma virado para a barriga do agente Cambraia, carregou no gatilho e o disparo foi efectuado.

O INEM foi rápido a chegar, tendo conseguido reanimar Filipe Cambraia de uma paragem cardíaca. O corpo ainda com vida do agente foi tirado da esquadra e transportado ao Hospital de Santa Maria, onde o polícia veio a falecer pelas 22h40. José Marques, o autor do disparo acidental, está em casa a receber apoio de psicólogos da PSP.

FAMÍLIA TERÁ INDEMNIZAÇÃO

Os pais e o irmão mais velho de Filipe Cambraia vão continuar a receber o salário do agente por pelo menos seis meses. "Depois disso, desencadeia-se um processo de atribuição de indemnização [a rondar os 100 mil euros] por morte em serviço, por parte da Direcção Nacional da PSP", disse ao CM Peixoto Rodrigues, presidente do Sindicato Unificado de Polícia (SUP). O recebimento desta pensão não tem, para já, data definida. Além disso, acrescentou Peixoto Rodrigues, a família do agente falecido vai ainda ser beneficiada com uma pensão mensal, cujo valor e data de atribuição serão determinados pela PSP.

CHEFE QUE BALEOU VAI SER PAI

José Carlos Marques, o chefe da PSP que fez o disparo acidental responsável pela morte do agente Cambraia, vai ser pai pela terceira vez. É casado e vive em Lisboa.

FALOU COM A MÃE ANTES DE MORRER

Filipe Cambraia falou com a mãe pela última vez no dia do acidente. Tinha prometido ir passar o fim-de-semana a casa, em Murtede. Era habitual ajudar os pais durante as folgas.